Recebi há poucas horas o convite para participar num inquérito sobre o estudo do mercado de tradução em Português que penso foi também remetido através do ProZ.com para os colegas da comunidade da língua portuguesa em geral. Há já tempo que pensava escrever algo sobre este assunto, isto é, a realidade actual das variantes da língua portuguesa no contexto dos vários países onde é utilizada. O texto abaixo foi por mim enviado na secção de comentários e traduz muito, embora não tudo, do que queria dizer sobre este assunto.
A primeira tentativa de uniformizar a língua portuguesa nos vários países que a utilizavam (com especial destaque para o Brasil) nasceu, na minha opinião, não da ideia altruísta de conservar a pureza da língua ou de a actualizar, mas da necessidade, por parte das autoridades portuguesas de então, de valorizar o volume de falantes dessa língua numa tentativa unilateral de a colocar no terceiro lugar da tabela mundial a seguir ao Inglês e ao Espanhol.
O primeiro acordo luso-brasileiro foi firmado quando já era notória a diferença de vocabulário, pronúncia, interpretação e utilização do Português em Portugal e no Brasil. Não existiam ainda os vários países da CPLP pois, com excepção do Brasil, todos os outros eram colónias portuguesas. O resultado imediato foi a modificação da gramática e da ortografia do português que apenas afectou Portugal e todos os portugueses que, de um dia para o outro, passaram a dar erros ortográficos. No Brasil nada foi alterado, o acordo firmado nunca foi respeitado e foi mesmo colocado no fundo da gaveta. O último acordo recente, a meu ver mera repetição dos erros do passado embora com um tom mais subtil, conseguiu apenas os mesmos objectivos e hoje e no futuro, quem se preza de saber bom português, ou o tem de aprender de novo, nada fácil a partir de uma certa idade, ou coloca no final to texto que “escreve de acordo com a antiga ortografia”. Este fenómeno da diferenciação de uma língua, quer falada quer escrita, tem razões várias. Não pretendo fazer qualquer crítica a este facto pois é norma que se verifica em praticamente todas as línguas europeias quando transladadas para as suas colónias ou territórios que ocuparam.
Os factores marcantes para a divergência linguística são, por parte da terra mãe, um orgulho e uma defesa constante da pureza da sua língua, através de regras severas e bem definidas que mantém ao longo do tempo a sua homogeneidade e constância e, da parte das terras colonizadas ou ocupadas, a inexistência dessas prioridades, acopladas ao aparecimento de novos termos só existentes nesses territórios e a mistura e integração de povos de várias origens, quer locais quer provenientes de outros países que, logicamente, trazem consigo novos termos e maneiras distintas de se expressar. Assim se verifica que o Inglês dos Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul e muitos mais apresenta muitas diferenças do Inglês do Reino Unido, o mesmo entre o Francês de França e o do Congo, do Haiti, do Canadá, etc., o Português de Portugal e o do Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné e até Açores e Madeira, e também entre o Espanhol (já de si bastante diversificado entre as várias comunidades autónomas como Galiza, Canárias, Andaluzia, Castela, etc, excluindo claro está a Catalunha e o País Basco por terem línguas intrinsecamente próprias) e os países da América Latina e não só.
Para quem, como eu, entrou no campo das traduções especializadas há mais de 23 anos, tem plena consciência do abismo que separa actualmente o português de Portugal, agora já chamado Português PT, do Português do Brasil, chamado agora Português BR. Dentro das novas tecnologias poucos são os termos que sejam actualmente utilizados igualmente pelas duas variantes e são muitos milhares.
Estava-se há 23 anos no começo de uma nova era nas traduções em Portugal, em que passava a ser exigida a tradução para o português, essencialmente nas áreas das novas tecnologias. E uma das necessidades prementes verificada era a não existência de glossários oficiais que permitissem, não só uma uniformização nessas áreas, mas também a definição e escolha de novos termos a aplicar, essencialmente quando eram inexistentes em Português. Foram totalmente rejeitadas as traduções já existentes feitas no Brasil, decisão difícil porque acarretou custos enormes para os clientes, por exemplo, a IBM Portugal, não só porque as frases, muito embora fossem gramaticalmente aceitáveis, eram bastante distintas do estilo utilizado em Portugal, mas também pela aceitação e utilização nessas traduções de numerosos termos directamente aportuguesados do Inglês, para muitos dos quais existiam palavras portuguesas que eram aplicáveis. Esta é hoje uma das maiores diferenças entre o Português de Portugal e o Português do Brasil, embora haja um acordo linguístico luso brasileiro, não muito seguido pela parte brasileira e com boas razões.
Foi tentado inicialmente oficializar esses glossários, tanto mais que, em muitos casos, implicava o aparecimento de novas palavras que deveriam passar a fazer parte integrante da língua portuguesa e, por tal, com direito a entrada em dicionário, para que fosse generalizado o seu conhecimento e aprendizagem por parte dos novos utentes. Porém o factor burocrático tornou essa tarefa impossível. A resposta por parte das entidades linguísticas, que dariam ou não o seu aval, tardava meses e a maior parte das vezes não havia nenhuma e a pressão para a sua utilização por parte dos tradutores e das empresas que pretendiam as traduções completadas, com prazos de entrega definidos e irrevogáveis, entraram em rota de colisão e os glossários seguiram adiante sem qualquer controle ou normas de utilização.
Por outro lado, as lutas internas a nível de tradutores e de empresas de tradução neste capítulo atingiu proporções inaceitáveis e cada um tentava impor a sua ideia, muitas vezes baseada apenas no simples desconhecimento da língua portuguesa. Geralmente, a norma democrática prevalecia que, não funcionando já muito bem em política, tem resultados desastrosos em ciência e a ignorância da maioria prevalecia sobre o conhecimento correcto de alguns. Se aplicarmos e aceitarmos essa regra nas comunicações linguísticas deveríamos todos falar mandarim. 1,35 milhares de milhões de chineses não podem estar democraticamente errados sobre esse ponto de vista.
Com o correr dos anos, o abismo foi sendo cada vez maior e hoje evito concorrer a trabalhos de tradução para Português BR, a não ser que se tratem de textos simples sem requisitos de qualificações ou traduções técnicas onde, logicamente, podem existir e ser vulgar muitos termos que não me passaria pela cabeça utilizar mas já aceites e usados pela maioria dos tradutores brasileiros e portanto conhecidos do povo brasileiro.
Com o extraordinário incremento da utilização da Internet, o problema agudizou-se. Uma das explicações muito utilizadas nas sugestões de traduções de perguntas ou dúvidas apresentadas por colegas é que o tradutor proponente dessa resposta baseia a sua escolha de determinadas palavras no facto de ter encontrado na Internet milhares de utilizações dessas mesmas palavras. Isto é, se os outros fizeram “bagunça” (para utilizar um termo brasileiro), eu também tenho o direito de a fazer e de a sugerir que os outros a façam. E assim se espalha e pior, assim se legaliza e passa a ser normativa a referida “bagunça”.
Pretende-se agora resolver um problema muito maior, ampliado pela independência das antigas colónias portuguesas e por tal pelo aumento do número de países com diversificação linguística, aplicando as mesmas regras. Será que se pretende introduzir no Português termos de quimbundo ou umbundo ou kikongo ou cuanhama ou suazi ou xitsonga ou ximaconde ou criolo ou fula ou mandinga e muitos outros? Será que alguém tem consciência que, por exemplo, o Português só é compreendido por 40% do povo de Moçambique e só 6% se considera nativo em Português e por 30% dos angolanos? Será que passará a fazer parte da terminologia portuguesa todos os vocábulos plenamente utilizados pelos brasileiros? Será que alguém tem consciência de que os únicos afectados serão a língua portuguesa e os portugueses (aqueles que sabem falar e escrever correctamente o Português e que vão diminuindo com o passar do tempo dadas as novas facilidades na educação de há uns anos a esta parte) e que nada se vai modificar nesses países que, logicamente e por necessidades internas, se afastarão sem qualquer relutância seguindo o seu próprio caminho haja ou não acordos firmados pelos seus governantes? Qual é afinal o objectivo que se pretende atingir? Será que é sequer viável? Será que daqui a alguns anos não teremos de assinar novos acordos aceitando todas as modificações entretanto introduzidas e generalizadas nesses países com claro detrimento da língua de Camões só para poder dizer que se fala Português em todos esses países? Porque não fazemos como os Ingleses que estão tentando actualizar a sua língua absorvendo as palavras inexistentes que são necessárias, não pretendendo abarcar todos os outros países dentro do mesmo saco? Quanto dinheiro se vai gastar nessa tentativa vã e inglória? Ó glória de mandar! Ó vã cobiça...
Honni soit qui mal y pense.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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